Estudo mostra como a malandragem se enraizou no Rio e passou a ser adotada como comportamento visto com simpatia pelo brasileiro
'Pensava o que fazer com a profusão de malandros e malandragens que a cada dia invadia em maior número meu cotidiano. Não pude deixar de rir da ironia quando percebi na calçada uma figura de calça branca, camisa vistosa estampada e boné branco. ‘Bezerra da Silva’, o motorista de táxi anunciou. E completou. ‘Esse aí é que é malandro mesmo. Porque malandro não é quem rouba. É quem usa o dom da palavra para conseguir o que quer.’
O trecho acima é do livro ‘No Fio da Navalha’, da professora de Literatura Giovanna Dealtry, e é o primeiro exemplo de malandragem nesta reportagem: usar o texto da própria autora para a apresentação inicial, diminuindo o trabalho do repórter. Segundo Giovanna, o brasileiro desenvolveu desde o Século 19 olhar simpático para a malandragem. Não vê mal em transgredir regra para se dar bem.
“Temos imagem de malandro meio estereotipada, de terno branco, navalha no bolso. Este malandro é restrito a uma faixa histórica, principalmente nos anos 40”, explica a professora. Para ela, o malandro se manifesta quando pedimos ao guarda, por exemplo, para deixar o carro por ‘cinco minutinhos’ em local proibido. “O que em outra cultura seria visto como infração, aqui faz parte da nossa negociação cotidiana”, observa.
A época de ouro da malandragem floresceu na Lapa, entre os anos 30 e 50. O produtor cultural Ary Nunes conheceu alguns expoentes. “O malandro típico andava de camisa de seda, sapato de duas cores e bem perfumado. Eram cheios de gírias”, conta.
Com o desenvolvimento econômico, a malandragem passou a ser questionada. “Tem de se ter um mínimo de formalidade para que a cidade possa funcionar”, acentua Giovanna. A obra, lançada pela Casa da Palavra, é resultado de cinco anos de pesquisa para sua tese de doutorado na PUC-RJ.
Giovanna vasculhou a literatura e a música para analisar como a figura do malandro fincou raízes em nossa cultura. É a imagem que também exportamos. Um dos exemplos é o Zé Carioca, lançado pela Disney, na década de 40.
O músico Francisco Otávio Reis, 50, virou personagem do cantor Zeca Pagodinho. Em ‘Chico não vai na curimba’, retrata suas andanças no culto afro. Ele já trabalhou com o pagodeiro. “Boa conversa e alegria fazem parte do meu repertório”, diz, em uma bar na Lapa. Ao terminar a entrevista, fez pedido cheio de ginga: “O amigo poderia deixar a saideira paga? Tô duro.”
Jair arrumou apelido após briga na boate
Da Lapa, Jair Mãozinha traz muitas recordações e cicatrizes, é claro. O próprio apelido é resultado de tiro que levou na mão direita ao defender um amigo, numa boate. A mão atrofiou, mas não o impediu de fazer história na noite carioca. Depois dos 18 anos, passou a frequentar a Lapa e a ganhar a vida como apontador do Bicho. Hoje, aos 73 anos, continua na boemia. Mas, agora, em vez de confusão, prefere comandar as serestas de quinta, na Rua Luiz Camões. “É difícil estar mal-humorado. Mas, se mexer comigo, é bom estar preparado”, avisa ele, casado, uma filha, dois netos.
DE LEVE
FIO DA NAVALHA
“O malandro vive no fio da navalha, na tênue linha entre o crime e a contravenção”, explica a escritora Giovana Dealtry.
PERFIL
A imagem tradicional do malandro é a de que possui aversão ao trabalho, adepto da informalidade e que usa a conversa para conseguir o que quer. Para o ‘Aurélio’, é quem “vive de expedientes. Vadio, tratante”.
ALMA DE MALANDRO
Em pequenas coisas do dia a dia, o malandro pode se manifestar. Alguns exemplos: parar em local proibido, mas ‘ só por alguns minutinhos’; chamar o guardador de ‘meu amigo’ para imprimir intimidade e não pagar estacionamento. Atrasado, costuma pedir para se dar ‘um jeitinho’.
MADE IN BRAZIL
Na Copa de 1994, nos Estados Unidos, um policial comentou a relação com os torcedores. Depois de elogiar o comportamento pacífico dos brasileiros, fez a crítica. “Não dá para entendê-los: estacionam na vaga de deficientes e saem mancando”.