Entra em vigor na semana que vem a nova lei paulista que bane o fumo de todos os ambientes de uso coletivo total ou parcialmente fechados, aí incluídos lugares de trabalho, de estudo, de culto religioso, de lazer, de esporte ou entretenimento, áreas comuns de condomínios, casas de espetáculos, teatros, cinemas, bares, lanchonetes, boates, restaurantes, praças de alimentação, hotéis, pousadas, centros comerciais, bancos e similares, supermercados, açougues, padarias, farmácias e drogarias, repartições públicas, instituições de saúde, escolas, museus, bibliotecas, espaços de exposições, veículos públicos ou privados de transporte coletivo, viaturas oficiais de qualquer espécie e táxis. Em termos práticos, o sujeito só poderá dar suas tragadas em locais abertos ou entrincheirado em sua própria casa ou carro.
Exagero? Decerto, mas não como você, leitor, está pensando. Já estive entre aqueles que consideravam a grita contra o chamado fumo passivo um movimento histriônico. Ao longo dos últimos anos, entretanto, surgiram evidências empíricas de que o fumante envenena e mata não apenas a si próprio (um direito incontestável) como também "inocentes", isto é, pessoas que não escolheram dedicar-se aos prazeres da nicotina. Não chego a utilizar as definições do saudoso George W. Bush para qualificar fumantes de terroristas, mas acho legítimo que limitem suas libações fumígenas a ambientes onde não provoquem mal a terceiros.
Não há dúvida de que o fumo é um grande problema de saúde pública. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o tabaco é o maior assassino global do planeta, matando anualmente 5,4 milhões de pessoas, o que representa 10% de todos os óbitos de adultos. Um número igualmente astronômico vive com as sequelas do hábito, que incluem doenças respiratórias e cardíacas, AVCs (derrames) e vários tipos de câncer. Os prejuízos econômicos, contabilizados em despesas hospitalares, dias de trabalho perdidos etc., chegam facilmente às centenas de bilhões de dólares.
E a cifra da OMS pode estar subestimada. Nas contas da organização, dos 5,4 milhões de óbitos, apenas 200 mil (3,7%) são debitados ao fumo passivo. Só que novas pesquisas sugerem que essa proporção pode ser maior.
Até algumas décadas atrás, associava-se o tabagismo quase que exclusivamente ao câncer de pulmão. Hoje, o cigarro continua provocando câncer, mas constatou-se que ele têm efeitos igualmente nocivos sobre o sistema cardiovascular --e com maior impacto epidemiológico.
Em 2006, o "European Heart Journal" trouxe um artigo da equipe liderada pelo médico Francesco Barone-Adesi, da Universidade de Turim, mostrando que houve uma redução de 11% nas internações e mortes por ataques cardíacos na região do Piemonte depois que entrou em vigor na Itália uma lei semelhante à paulista. Compararam-se os cinco meses posteriores à adoção da nova regra com igual período do ano anterior. As admissões hospitalares e óbitos baixaram de 922 para 832. Foram considerados apenas pacientes com menos de 60 anos. Não se pode considerar a diminuição como parte de uma tendência preexistente, porque o número de internações para a patologia vinha crescendo no Piemonte ao longo dos últimos anos.
Resultados ainda mais significativos (queda de 17%) foram observados na Escócia, como mostra artigo de Jill Pell "et alii" publicado no "New England Journal of Medicine" em 2008, que ainda atribuiu 67% dessa redução a pacientes não fumantes.
Quem frequentou as aulas de lógica vai se lembrar de que correlação não é causa. É perfeitamente possível que essas diminuições se devam a outros fatores que não o banimento do tabaco ou que sejam fruto de variações puramente aleatórias. Ocorre que a sucessão de trabalhos apontando para a mesma direção, ao lado do surgimento de explicações fisiológicas verossímeis para os efeitos do tabaco sobre o sistema cardiovascular, indicam que devemos pelo menos testar controles fortes como o proposto pela lei paulistana. Se a hipótese estiver correta, vidas de "inocentes" terão sido salvas; se não, fumantes terão apenas perdido o direito a algumas baforadas em lugares públicos.
Sou um ferrenho defensor das liberdades individuais e considero que até drogas como cocaína e heroína deveriam ter venda livre para maiores de idade. O que cada um faz consigo mesmo sem ameaçar terceiros é assunto particular fora da alçada do Estado. Creio, entretanto, que as evidências apresentadas até aqui devem bastar para convencer mesmo o mais empedernido dos fumantes (eu já fui um) de que ele não tem o direito de aspergir seu veneno sobre os concidadãos.
A essa altura, o leitor deve estar se perguntando por que diabos eu achei a norma patrocinada pelo governador José Serra exagerada. Bem, creio que o objetivo da lei é acertadíssimo assim como a terapêutica proposta, que é o virtual banimento da fumaça. O que não gosto no novo diploma, à parte detalhes realmente menores, como não permitir que atores fumem em palco --que poderiam ser resolvidos com bom senso e negociação_ são os mecanismos de fiscalização em que ela se apoia.
Refiro-me especificamente ao artigo 3º da lei estadual nº 13.541/09, que reza: "O responsável pelos recintos de que trata esta lei deverá advertir os eventuais infratores sobre a proibição nela contida, bem como sobre a obrigatoriedade, caso persista na conduta coibida, de imediata retirada do local, se necessário mediante o auxílio de força policial". No mesmo espírito caminham outros dispositivos da norma, que convidam as pessoas a denunciar infrações. Ao que parece, a deduragem poderá até ser feita de forma anônima pela internet.
Em primeiro lugar, não aprecio a ideia de uma lei que obrigue as pessoas a serem autoritárias. Não sei até que ponto uma norma que força um dono de bar ou restaurante a chamar a polícia para expulsar seu cliente tem amparo na razoabilidade, que é requisito básico de qualquer mecanismo legal. Num caso análogo, que é o do cinto de segurança, eu não me sinto obrigado a expulsar de meu carro o carona que não queira afivelar-se. Ora, o pressuposto é o de que ambos somos cidadãos competentes e conhecedores da lei. Punir a mim e não a ele pela infração fere o princípio constitucional de individualização da pena (CF, art. 5º, inciso XLVI).
De resto, é duvidoso o que a polícia possa fazer quando chamada, uma vez que a lei não estabelece nenhuma punição para o fumante recalcitrante, mas apenas para o dono do estabelecimento.
Minha sensação é a de que Serra e os deputados estaduais caíram na velha armadilha do populismo. Quiseram ficar bem com os 80% de não fumantes, mas sem bater de frente com os 20% que dão suas tragadas. O resultado é essa esquisitice jurídica, pela qual a conduta que se quer proibir não é punível, mas deixar de reprimi-la é.
Coisas da política. Seja como for, não vejo maiores problemas, porque não creio que os fumantes se obstinarão. O mais provável é que aceitem os olhares recriminadores dos não fumantes e guardem suas baforadas para o ar livre. Todos estaremos melhor.
Por Hélio Schwartsman, colunista da Folha de S. Paulo e Bacharel em filosofia.