domingo, 23 de agosto de 2009

A opção pelo Curso de Graduação em Direito: Prós e contras

1. Por que se deve cursar Direito?

Primeiramente, porque o Direito constitui uma das ciências humanas mais interessantes e vastas, lidando com conteúdos da Filosofia, da Ciência Política, da Sociologia, da História, das Artes e da Literatura. Cursar Direito significa, no mínimo, expandir os horizontes culturais. O Direito oferece a seus cultores uma formação humanística rigorosa, disponibilizando-lhes conhecimentos básicos sobre o mundo em que vivemos. Tudo que nos rodeia possui algum sentido jurídico, e fica bem mais fácil lidar com algumas situações cotidianas se entendermos como se inserem na tessitura jurídico-normativa.

Outro bom motivo para o estudo do Direito radica-se na possibilidade de realização pessoal para quem pretende representar o papel de agente de mudanças e de transformações sociais. A estrutura político-social está impregnada de normas jurídicas. Para interagir com tal arcabouço parece-me essencial um conhecimento jurídico sólido e profundo, que somente pode ser adquirido em um curso superior de Direito. Estudar o Direito de maneira séria e consciente equivale a um ato de cidadania. Um bom curso de Graduação em Direito deve ter em mira formar cidadãos completos e conscientes, que, obviamente, poderão ser advogados, juízes, promotores de justiça etc., mas que em primeiro plano serão pessoas interessadas nos destinos da sociedade que integram.

Há quem se dedique romanticamente ao curso de Graduação em Direito com o objetivo utópico de mudar o mundo de uma vez para sempre, ou, em casos mais modestos, resolver problemas jurídicos pessoais, levando a sério a máxima da sabedoria popular segundo a qual “se você quer algo bem feito, faça você mesmo”. Em minha experiência como professor, conheci alguns alunos que resolveram se formar em Direito apenas para entender processos judiciais em que estão envolvidos há anos e que lhes parecem sumamente irracionais e injustos. Sem dúvida, trata-se de uma boa motivação inicial, mas com o tempo ela quase sempre deixa de existir. Lembremo-nos que o curso de Graduação em Direito dura normalmente cinco anos... É preciso que você se questione: quero compreender o Direito apenas para lidar com os meus próprios problemas? Se a resposta for positiva, penso que a consulta a um advogado competente é suficiente, não sendo necessário o recurso extremo da Graduação em Direito. Todavia, os esclarecimentos oferecidos por um advogado honesto podem aumentar o sentimento de revolta do seu cliente, pois devido ao nonsense e ao absurdo kafkiano imperantes em nosso sistema jurídico, várias situações conflitivas não contam com soluções jurídicas satisfatórias.

Quanto àqueles poucos idealistas que vêem no Direito um instrumento para a reforma total e incondicional da sociedade, parece-me prudente que redirecionem as suas prioridades e os seus ideais. Um homem sozinho não muda o mundo, e se a sua busca é a de justiça absoluta, está fadada ao fracasso. Aspirações nobres costumam ser potentes combustíveis no início do curso de Graduação em Direito; mas, se não são redimensionadas, no decorrer do curso levam invariavelmente a um misto de frustração e de sentimento de impotência, já que ninguém, por melhor que seja, modifica estruturas político-sociais complexas apenas armado de boa vontade. Podemos fazer a diferença, sem dúvida. Cada homem é necessário para a história do mundo. Não prego o ceticismo e a indiferença, mas um realismo transformador efetivo e conseqüente. Devemos ter consciência da nossa pequenez diante da multiplicidade do real. Se, com o Direito, conseguirmos melhorar um pouquinho o mundo, já teremos realizado um grande feito. Além disso, ainda que possamos semear grandes melhorias, são quase sempre os nossos filhos ou netos que colherão os frutos maduros. Lutar contra a indiferença e o alheamento constitui, para mim, o verdadeiro ato de heroísmo dos dias de hoje. Não se resignar diante da injustiça, eis o maior dos desafios para o homem do Direito. Aliás, resignar-se, disse Honoré de Balzac (1799-1850), equivale a um suicídio cotidiano. Dedicar-se ao Direito e à justiça não significa necessariamente bater-se por grandes propósitos, mas, como quer William Shakespeare (1564-1616), achar motivo para briga em uma palha se a honra está em jogo. O devoto do verdadeiro Direito – e não das versões espúrias que transitam por este país – precisa estar sempre pronto a responder positivamente à questão fatal proposta por Rudyard Kipling (1865-1936) em seu conhecido poema “If” (“Se”), abaixo apresentado na magistral tradução de Guilherme de Almeida (1890-1969):

Se és capaz de manter a tua calma quando
Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa;
De crer em ti quando estão todos duvidando,
E para esses no entanto achar uma desculpa;
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
E não parecer bom demais, nem pretensioso;
Se és capaz de pensar – sem que a isso só te atires;
Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires
Tratar da mesma forma a esses dois impostores;
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste,
E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
E refazê-las com o bem pouco que te reste;
Se és capaz de arriscar numa única parada
Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
Resignado, tornar ao ponto de partida;
De forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe,
E a persistir assim quando, exaustos, contudo
Resta a vontade em ti que ainda ordena: “Persiste!”;
Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes
E, entre reis, não perder a naturalidade,
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
Se a todos podes ser de alguma utilidade,
E se és capaz de dar, segundo por segundo,
Ao mínimo fatal todo o valor e brilho,
Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
E o que mais – tu serás um homem, ó meu filho!

2. Por que não se deve cursar Direito?

A resposta a esta questão parece-me bem mais complexa e interessante do que à anterior, já que expõe alguns mitos relacionados à escolha do curso de Direito feita pelos estudantes. Muitas pessoas que consideram a possibilidade de se dedicar a um curso de Graduação em Direito têm em vista o status social e os altos ganhos que, supostamente, as carreiras jurídicas oferecem. Aqueles que pensam assim deveriam ler com atenção a reportagem de capa da revista “Carta Capital” de novembro de 2005 (ano XII, nº 370), onde se alude ao inchaço do mercado e à situação de virtual desemprego da maioria dos egressos das centenas de cursos de Graduação em Direito existentes no país. Ao lermos o dito texto – intitulado “Os campeões do diploma” e destacado na capa com a chamada em letras garrafais “Universidade: A miséria usa beca” – ficamos estarrecidos ao saber que Direito e Administração são os cursos mais procurados pelas pessoas, abocanhando, sozinhos, 30% do mercado brasileiro de cursos superiores. Entretanto, tornar-se Bacharel em Direito não equivale a garantia de emprego, muito menos de poupudos salários. Vejamos os dados: “O desemprego entre formados em cursos de direito, cujo número quadruplicou na última década, é alto no País. Segundo o Observatório Universitário, do total de 665.409 bacharéis registrados pelo Censo 2000 do IBGE, 25% não estavam trabalhando na semana de referência da pesquisa. E, entre os ocupados, apenas 51,3% trabalhavam na área jurídica. Dos que atuavam em outros ramos, muitos exerciam atividades que exigem qualificação inferior, como as de técnico de nível médio (26%), trabalhadores de serviços administrativos (15%) e serviços e vendedores do comércio (8%)” (p. 13).

Segundo reportagem do Portal Aprendiz, no dia 04 de agosto de 2006 existiam no Brasil exatamente 1003 cursos de Graduação em Direito funcionando, conforme levantamento da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB. Estima-se que a cada ano 120 mil alunos se formam em Direito no Brasil, sendo que só em 2004 foram matriculados 533 mil estudantes em cursos de Direito brasileiros. O Estado de São Paulo possui atualmente 222 cursos de Graduação em Direito, mais do que todas as escolas de Direito dos Estados Unidos da América, em número de 205. Minas Gerais ocupa o segundo lugar no ranking brasileiro, com 125 cursos de Graduação em Direito. Ao lado da Bahia, Minas Gerais é o Estado que apresenta maior índice de crescimento no que se relaciona à abertura de cursos jurídicos. Por fim, frise-se que atualmente o Brasil conta com cerca de 517 mil advogados inscritos nos quadros da OAB, apesar da reprovação no Exame de Ordem girar em torno de 70%, chegando a 90% em São Paulo.

Hoje a conclusão de um curso de Graduação em Direito não significa nada em termos de perspectivas para o futuro. Já não estamos no séc. XIX, quando o número de bacharéis ainda era relativamente pequeno no Brasil, razão pela qual a profissão de advogado era bastante elitizada. E mesmo naquela época já era popular a quadrinha: “Quando Deus voltou ao mundo,/ Para punir os infiéis,/ Ao Egito deu gafanhotos,/ Ao Brasil deu bacharéis”. Nos dias atuais, além dos quase 700 mil bacharéis registrados, existem em nosso país cerca de um milhão de estudantes de Direito matriculados em cursos de Graduação públicos ou privados. Agora, o Bacharel em Direito que quiser fazer jus aos altos salários oferecidos por certas carreiras jurídicas – notadamente as do Poder Judiciário e do Ministério Público – deverá se submeter a concursos cada vez mais exigentes e seletivos. Ele não poderá sequer advogar, caso não obtenha sucesso no Exame de Ordem, que em 2005 aprovou em São Paulo apenas 7,16% dos candidatos inscritos (p. 14). Tal significa que o nível de exigência para a ascensão social e financeira está cada vez mais alto, reflexo da explosão de cursos de Direito no Brasil, a maioria sem a mínima possibilidade de formar verdadeiros bacharéis.

Por outro lado, mesmo aqueles que conseguem ser aprovados nos predatórios concursos públicos devem estar cientes de que preocupações exclusivamente financeiras e de status social são sinônimos de frustração pessoal e de uma vida vazia. Se não fazemos o que gostamos, somos menos do que fantasmas repetindo diariamente rituais sem sentido. Diz-se que o trabalho dá sentido à vida humana e, obviamente, remuneração digna constitui requisito importante para a escolha de qualquer profissão. Contudo, transformar a recompensa pelo trabalho em motivo para o trabalho é apostar na depressão, na frustração e em constantes visitas ao psicanalista, quiçá ao psiquiatra. Há muitos modos de se ganhar dinheiro, se tal corresponde ao seu principal objetivo. E a formação de nível superior, especialmente em Direito, não é um deles. Os cursos de Graduação em Direito são onerosos (espiritual e economicamente), seus resultados incertos e, na maioria das vezes, incapazes de, por si mesmos, mudarem a vida de alguém que não se tenha decidido internamente a fazê-lo. Não há passes de mágica e nem soluções fantásticas. O Direito não constitui panacéia para todos os males, e mesmo que você goste do curso – o que já representa um ótimo começo –, se você não se dedicar a ele com seriedade e rigor – e isso implica abrir mão de muitas coisas –, certamente irá fracassar, engrossando as estatísticas de bacharéis que não atuam na seara jurídica.

Assim, altos salários e posição social não são bons motivos para se graduar em Direito. Do mesmo modo, ter parentes na área jurídica também me parece irrelevante. Aliás, falando em pais e filhos, há um considerável número de jovens cursando a Graduação em Direito não por opção própria, mas para agradar aos seus genitores, que inclusive costumam recompensá-los com os mais diversos bens, em paga à obediência dos mesmos. Tal prática parece-me odiosa porque, a um só tempo, anula a liberdade do indivíduo e o acostuma a um ambiente em que corrupção e suborno são vistos como normais. Evidentemente, a escolha – ou mesmo a imposição – dos pais não se apresenta como razão adequada para se cursar Direito, e isso por motivos óbvios: somente o próprio indivíduo é dono do seu destino. Por mais que esta verdade possa gerar desavenças familiares, deve ser compreendida tanto por pais quanto por filhos, especialmente por aqueles que se negam a crescer e delegam com prazer todas as decisões sobre as suas vidas aos pais. A opção por certo curso superior envolve um exercício de liberdade e de maturidade, não devendo ser realizada por terceiros, ainda que bem intencionados, sob pena de geração de frustrações e de problemas bastante sérios em médio e longo prazo.

A morte de Euclides da Cunha em 1909 ainda hoje continua a provocar polêmica


Na manhã do dia 15 de agosto de 1909, Euclides da Cunha se vestiu de preto. Não pregara olho durante a noite, fumara sem parar. De Copacabana, seguiu para a casa dos primos Nestor e Arnaldo, em Botafogo, e lá pegou emprestado um revólver Smith & Wesson, calibre 22. Na Central do Brasil, tomou o trem. Passou por São Cristóvão, Riachuelo, Sampaio, Méier... Na estação da Piedade, saltou. Ao chegar à casa 214 da Estrada Real de Santa Cruz, hoje Avenida Suburbana, o autor de "Os sertões" estava disposto a "matar ou morrer": acabou morto, com quatro tiros, por Dilermando de Assis - um cadete do Exército que, desde 1905, mantinha um romance pra lá de proibido com Anna, mulher do escritor. Euclides tinha 43 anos, Dilermando, 21. Anna? 37.
'Espiga de milho'

Três dias antes da "Tragédia da Piedade", Anna, a Saninha, havia saído de casa, após discutir com Euclides. Na primeira noite, buscou refúgio na residência da mãe, Túlia, em São Cristóvão. Na sexta, se instalou na Piedade com o filho Luiz, de quase 2 anos - o "espiga de milho no meio de um cafezal", como o escritor se referia ao filho de Anna e do "Sargentão". A tempestade estava formada. No sábado, o filho Solon, de 15 anos, e o irmão de Dilermando, Dinorah, anunciaram a tragédia, mas chovia e Anna não queria sujar o vestido branco. No domingo, prometeu, voltaria para Copacabana. "Antes tivesse ido embora...", disse à empregada Anna Lima, na manhã do dia 15. O cadáver do marido estava no quarto, por ironia, na cama de Dilermando.

Legítima defesa
Charge sobre o crime publicada na época pelo jornal 'O Malho'

Passados cem anos, a morte de Euclides continua a revolver ódios e paixões. De um lado, os que pregam que ele foi assassinado covardemente no jardim. De outro, os que defendem que Dilermando agiu em legítima defesa ao disparar o seu revólver 38 contra o escritor, quando ele ainda estava dentro de sua casa.

- A tragédia foi contada por Dilermando, Anna e Dinorah. Tudo o que sabemos foi narrado pelos interessados. O que se estranha é a ineficiência da promotoria, que não se valeu das provas circunstanciais e não pôs em dúvida o que eles disseram - protesta Joel Bicalho Tostes, de 84 anos, genro de Manoel Afonso, um dos quatro filhos que Euclides da Cunha teve com Anna (Vídeo: assista à entrevista de Joel) .


Apesar de condenado nas ruas, Dilermando de Assis foi absolvido por duas vezes no tribunal. Mas a sentença não poria fim aos anos de discórdia.


História de contradições


Eles tomavam café quando Euclides bateu à porta da casa da Piedade. Na véspera, o escritor tinha dito ao filho Solon: "Tua mãe é uma adúltera". Dinorah foi incumbido, por Dilermando, de abrir o portão. O campeão de tiro foi para o quarto vestir uma "túnica". Anna e o filho Luiz foram trancados em gabinete fotográfico. Solon "lavava o rosto" no quintal. A empregada Ana Lima também estava nos fundos da casa.

"Corja de bandidos!", vociferou Euclides, após abrir a pontapés a porta do quarto de Dilermando e atirar "quase à queima-roupa" contra o cadete. Ao tentar socorrer o irmão, Dinorah leva dois tiros. Euclides e Dilermando travam o duelo. Euclides sai. Duas vizinhas - uma de 9 anos - contam que Dilermando foi até a porta e, após dizer "seu cachorro", deu o último tiro em Euclides. Dilermando nega. Das sete cápsulas do revólver de Euclides, uma não foi deflagrada. Dilermando saiu da tragédia com quatro ferimentos. Do seu revólver, não sobrou nenhuma bala.
Para o juiz cearense Manuel Clístenes de Façanha e Gonçalves, autor do livro "Contrastes e Confrontos na vida de Euclides da Cunha", ainda sem editora, Euclides foi vítima de homicídio doloso.
- A versão que ficou para a história foi a de Dilermando. E ele nunca contou exatamente como se deram os tiros. Disse que primeiro atingiu Euclides no pulso, depois afirmou ter sido no peito. Como o escritor sairia da casa, com a vértebra fraturada? - questiona.


Homicídio doloso
Para ele, a absolvição de Dilermando não decorreu de sua alegada inocência.
- Na realidade, o julgamento que o favoreceu foi resultado de soma de fatores. Dilermando falou apenas na delegacia. E o seu segundo depoimento foi feito por escrito. Ele contou com a excelente defesa do advogado Evaristo de Moraes. O Ministério Público não acompanhou as audiências de instrução, o promotor estava doente. E a família da vítima não contratou assistente de acusação. Analisando hoje o processo, a gente vê que ação dele pode ter sido iniciada como um ato de legítima defesa, mas, sem sombra de dúvidas, foi finalizada como homicídio doloso - afirma o juiz.



Os personagens


Euclides da Cunha - Nascido em Cantagalo (RJ), aos 3 anos perdeu a mãe, foi abandonado pelo pai e passou boa parte da juventude pulando de casa em casa de parentes. Casou-se em 1890 e, com Anna, teve quatro filhos. Militar, jornalista, escritor, trabalhou como engenheiro.



Anna da Cunha - Após a morte de Euclides, casou-se em 1911 com Dilermando. Teve sete filhos com ele, dois morreram pouco após o nascimento. Em 1926, separou-se do militar. Morreu em 12 de maio de 1951, vítima de câncer, no Rio.



Dilermando de Assis - Em 4 de julho de 1916, mataria num cartório Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, que fora vingar a morte do pai. Foi absolvido. Em 1926, trocou Anna por Marieta e teve outra filha. Morreu em 13 novembro de 1951, de derrame cerebral, em São Paulo.



Dinorah de Assis - Ao lado de Dilermando, também foi alvejado por Euclides na casa da Piedade. Ele disse que o escritor entrou na residência atirando. O cadete da Marinha e jogador de futebol acabaria por suicidar-se, aos 32 anos, em Porto Alegre.



Solon da Cunha - Dois meses antes da morte de Quidinho, Solon (na foto à esquerda, sem chapéu) morreria assassinado, na Amazônia. Delegado em Tarauacá (Acre), morreu durante diligência em busca de homicidas. Tinha 24 anos. As últimas palavras: "Ai meu pai".



Angélica e Lucinda Rato - As tias de Dilermando, que chegaram a morar na casa de Euclides, confirmaram a traição. Elas é quem forneceram ao escritor o endereço da casa da Piedade (na foto) e o teriam insuflado a matar e "cuspir sobre o cadáver" da mulher que o traiu.




Direitos Fundamentais e Impunidade: em defesa da aplicação do princípio da proibição de abuso de direitos fundamentais

Direitos Humanos para Humanos Direitos?
George Marmelstein, juiz federal e professor de direito constitucional
Há uma grande parcela da sociedade que não vê os direitos fundamentais com bons olhos. Imagina-se que eles protegem apenas criminosos. Costuma-se dizer que cidadãos “de bem” não precisariam de direitos fundamentais, ou então que apenas os “humanos direitos” mereceriam ser titulares de “direitos humanos”.

Essa é uma visão extremamente equivocada. Primeiro, porque reduz os direitos fundamentais às garantias do processo penal, quando eles são muito mais do que isso. Segundo, porque acredita que seja possível dividir a sociedade em mocinhos e bandidos, quando muitas vezes são os tais “humanos direitos” que oprimem, discriminam e, como conseqüência, geram, num efeito bumerangue, a violência que tanto os assusta. Como já disse o poeta Bertold Brecht, “do rio que tudo arrasta, se diz violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”.

Mesmo assim, não há como negar que existe uma visão distorcida dos direitos fundamentais por parte de algumas entidades de proteção aos “direitos humanos” e de alguns juristas brasileiros. Há um certo fundamentalismo em favor das garantias processuais penais que, em doses exageradas, pode eventualmente levar à impunidade. E os direitos fundamentais não compactuam com a impunidade. Na verdade, esses direitos são instrumentos de proteção à dignidade humana e à limitação do poder. Logo, não podem servir justamente para acobertar práticas criminosas que violem essa dignidade. Não se trata de colocar as “razões de Estado” acima da proteção dos indivíduos, porque, se assim fosse, a razão de ser dos direitos fundamentais – que é a limitação do poder estatal – desapareceria. O que se deseja é tão somente impedir que os direitos fundamentais sejam invocados para evitar a punição de comportamentos que atentem contra a própria dignidade humana. Essa idéia é conhecida como princípio da proibição de abuso dos direitos fundamentais, que será explicado neste texto.

Direitos Fundamentais e Dever de Proteção

Todo direito fundamental gera para o Estado um dever de respeito, proteção e promoção. Ou seja, o Estado tem o dever de respeitar (não violar o direito), proteger (não deixar que o direito seja violado) e promover os direitos fundamentais (possibilitar que todos usufruam o direito).

Para os fins deste texto, é suficiente mirar nosso enfoque para o chamado dever de proteção. Em razão desse dever, o Estado tem a obrigação de proteger os direitos fundamentais, impedindo a sua violação por quem quer que seja. Isso inclui, muitas vezes, o dever de criminalizar e de punir as violações aos direitos fundamentais, como forma de desestimular o desrespeito aos valores constitucionais pelos particulares. Aliás, é o que se extrai do artigo 5º, inc. XLI, da CF/88: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos vem sistematicamente considerando como violação ao dever de proteção a não apuração, de forma rápida, dos crimes praticados em detrimento dos direitos humanos/fundamentais. Para a Corte, a impunidade dos criminosos, entendida como a falha em seu conjunto de investigação, persecução, captura, processo e condenação, ofende os direitos das vítimas. Há, portanto, uma obrigação do Estado de “investigar seriamente, com os meios ao seu alcance, as violações cometidas no âmbito de sua jurisdição, a fim de identificar os responsáveis, impor-lhes as sanções pertinentes e assegurar à vítima uma adequada reparação”. E mais:

Se o aparelho do Estado agir de modo que tal violação fique impune e não se restabeleça, enquanto possível, a vítima na plenitude dos seus direitos, pode-se afirmar que não cumpriu o dever de garantir o livre e pleno exercício às pessoas sujeitas à sua jurisdição. O mesmo é válido quando tolerar que os particulares ou grupos dos mesmos ajam livre ou impunemente em menoscabo dos direitos humanos reconhecidos na Convenção[1].

Vale lembrar que os crimes mais graves quase sempre representam violações aos direitos fundamentais. Por exemplo, um homicídio brutal, praticado com crueldade e frieza, é uma violação clara ao direito fundamental à vida. Um estupro é um manifesto desrespeito à integridade física e moral da mulher e, portanto, uma afronta à sua dignidade. Um seqüestro viola a liberdade; um roubo, a propriedade. Uma apropriação indevida de verbas públicas significa privar boa parcela da população de receber os direitos sociais garantidos constitucionalmente. E assim por diante.

O direito penal é, nesse sentido, um instrumento de proteção de direitos fundamentais, sobretudo nos casos em que o bem jurídico-penal protegido for um valor constitucional.

Quando um indivíduo pratica um crime no qual o bem jurídico é um valor ligado à dignidade da pessoa humana é dever do Estado (dever de proteção) agir para que essa violação a direitos fundamentais seja punida. E quanto mais importante for o bem jurídico violado, mais intensa deve ser a punição.
É dentro desse contexto que surge um princípio que é extremamente valioso para a correta interpretação dos direitos fundamentais: o princípio da proibição de abuso.


Em diversas declarações de direitos pelo mundo afora, há a expressa menção ao princípio da proibição de abuso de direito fundamental. Em linhas gerais, esse princípio estabelece que nenhum direito fundamental deve ser interpretado no sentido de autorizar a prática de atividades que visem à destruição de outros direitos ou liberdades. Em outras palavras: o exercício de direitos fundamentais não pode ser abusivo a ponto de acobertar práticas ilícitas/criminosas cometidas em detrimento de outros direitos fundamentais ou de valores constitucionais relevantes.

Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece o seguinte:

“Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma atividade ou de praticar algum ato destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados” (artigo XXX).
Aqui no Brasil, não há uma norma constitucional expressa acolhendo o princípio da proibição de abuso de direito fundamental. Mas ele está latente no sistema constitucional brasileiro.

Basta ver inúmeras normas da própria Constituição que possibilitam a limitação ou até mesmo a perda total de direitos fundamentais quando existe abuso no seu exercício.

O domicílio é inviolável, mas pode ser invadido em caso de flagrante delito[2]. É resguardado o sigilo das comunicações, mas é possível a interceptação telefônica para fins de investigação criminal[3]. O direito de reunião é assegurado, desde que para fins pacíficos[4]. É vedada a associação ou partido político de caráter paramilitar[5]. A propriedade pode ser confiscada se estiver sendo usada para plantação ilegal de psicotrópicos, bem como será permitida a apreensão de todo bem adquirido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes[6]. A liberdade é protegida, mas é possível a prisão em caso de flagrante delito ou por ordem de autoridade judicial competente[7].

Analisando sistematicamente todas essas normas, o que se conclui é que os direitos fundamentais não podem ser utilizados para fins ilícitos, até porque eles existem para promover o bem-estar e a dignidade do ser humano e não para acobertar a prática de maldades que possam ameaçar esses valores. Indo mais além, pode-se dizer que o exercício de direitos fundamentais não pode gerar uma situação de injustiça, nem pode servir de desculpa para a prática de atos moralmente injustificáveis ou para violar direitos de terceiros.

A propósito, o Pacto de San Jose da Costa Rica, já incorporado ao direito interno brasileiro, contém um dispositivo prevendo claramente o princípio da proibição de abuso de direito fundamental:

“Artigo 29 – Normas de interpretação: Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de: 1. Permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; 2. Limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados; 3. Excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; 4. Excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza”.

A Jurisprudência brasileira tem aplicado, ainda que inconscientemente, o princípio da proibição de abuso de direito fundamental. Afinal, como sempre defende o Ministro Celso de Mello em seus votos][8], "o estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros”

Pode-se mencionar, nesse sentido, o julgamento em que o Supremo Tribunal Federal admitiu como lícita a violação do sigilo da correspondência de um preso, pelo próprio Diretor do Presídio, sem ordem judicial, para impedir a prática de crimes, com base na Lei de Execuções Penais, que autoriza essa devassa na correspondência de presidiários[9]. A parte final da ementa representa uma amostra clara do princípio da proibição de abuso de direito fundamental: “a cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas”.

Também vale citar uma decisão do Superior Tribunal de Justiça que entendeu que um presidiário que esteja organizando crimes de dentro do presídio não poderia invocar o direito de sigilo das comunicações telefônicas para invalidar a prova produzida contra ele. Eis um trecho da ementa:

Réu condenado por formação de quadrilha armada, que se acha cumprindo pena em penitenciária, não tem como invocar direitos fundamentais próprios do homem livre para desentranhar prova (decodificação de fita magnética) feita pela polícia” (STJ, RMS 9129/RJ, rel. Min. Adhemar Maciel, j. 6/2/1996).

Apenas um esclarecimento acerca dos termos utilizados no citado acórdão. Em nenhum momento, ficou dito que um preso não teria direitos fundamentais. Isso seria um absurdo. O que se disse foi que o preso, por estar em uma situação especial de sujeição, não teria direito a realizar ligações telefônicas, que seria um direito próprio do homem livre. Logo, ao utilizar o telefone para se comunicar com o mundo exterior, o presidiário está cometendo um ilícito e não exercendo um direito fundamental. Assim, ele não poderia invocar o direito ao sigilo para evitar a sua condenação, já que ele não tem sequer o direito de telefonar quanto o mais o de sigilo telefônico.

Outro exemplo que pode ser citado diz respeito à busca e apreensão em escritórios de advogados.

Não há dúvida de que os escritórios de advocacia estão protegidos pela cláusula de inviolabilidade do domicílio. Existem inúmeras decisões judiciais nesse sentido. Mesmo assim, nada impede que, mediante ordem judicial fundamentada, seja determinada uma busca e apreensão nesses escritórios, caso eles estejam sendo usados para ocultar provas ou mesmo diretamente envolvidos na prática de crimes, por exemplo.

Nesse sentido, merece ser citada a elucidativa decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

O direito à inviolabilidade do escritório ou local de trabalho do Advogado, dos seus arquivos e dados, da sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas ou afins, não é absoluto, podendo ser afastado em caso de busca e apreensão determinada por magistrado. Naturalmente, o poder judicial também não é ilimitado, o que implicaria inutilizar, na prática, a prerrogativa profissional: o juiz só pode determinar busca e apreensão em escritório ou local de trabalho de Advogado nas precisas hipóteses do artigo 240 do Código de Processo Penal. É dizer: o direito do Advogado à privacidade do seu escritório ou local de trabalho, dos seus arquivos e dados, da sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas ou afins, não vai além da medida estritamente necessária para a garantia do legítimo exercício da advocacia, em nome da liberdade de defesa e do sigilo inerente à essa atividade profissional, não podendo ser confundido com imunidade para a prática de crimes, para a ocultação de provas ou para o favorecimento de criminosos, hipóteses que legitimam plenamente a busca e apreensão determinada por magistrado[10].

Nessa mesma linha, o STF, ao julgar um relevante processo ligado à chamada “Operação Hurricane”, na qual havia indícios de participação de autoridades públicas, inclusive magistrados, em atividades ilegais no Rio de Janeiro, admitiu a utilização da chamada prova emprestada, onde uma escuta telefônica autorizada por juiz criminal (portanto, lícita) pôde ser utilizada também para fins de apuração das responsabilidades administrativas dos envolvidos. No fundamento do julgado, o Ministro Cezar Peluso aplicou com perfeição o princípio da proibição de abuso de direitos fundamentais:

a restrição constitucional [que apenas autoriza a quebra do sigilo das comunicações telefônicas para fins de investigação criminal] tem por objetivo claro preservar a intimidade, como bem jurídico privado, mas essencial à dignidade da pessoa, até o limite em que tal valor, aparecendo como obstáculo ou estorvo concreto à repressão criminal e punição de crime grave, enquanto o mais conspícuo dos atentados às condições fundamentais de subsistência da vida social. O limite da garantia da intimidade (…) não pode condescender com a impunidade (…). Nesse sentido, costuma dizer-se que a garantia constitucional não serve a proteger atividades ilícitas ou criminosas. Daí autorizar, em caráter excepcional, seja interceptada a comunicação telefônica, apenas quando tal devassa se revele como fonte de prova imprescindível à promoção do fim público da persecução penal. (…)

Não me parece ajustar-se às normas discerníveis nos textos constitucional e legal, enquanto ingredientes do sistema, é que os resultados práticos-retóricos da interceptação autorizada não possam produzir efeitos ou ser objeto de consideração nos processos e procedimentos não penais, perante o órgão ou órgãos decisórios competentes, contra a mesma pessoa a que se atribua, agora do ponto de vista de outra qualificação jurídica de ilucitude em dano do Estado, a prática ou autoria do mesmo ato que, para ser apurado na sua dimensão jurídico-criminal, foi alvo de interceptação lícita, como exigência do superior interesse público do mesmíssimo Estado”[11].

Conclusão

O que se deve concluir, através desses exemplos, é que sacralizar as garantias criminais, como se fossem valores absolutos e exageradamente inflexíveis, significa abrir a porta para a impunidade e, vale enfatizar, os direitos fundamentais não compactuam com a impunidade, já que o Estado tem o dever de punir qualquer violação a esses direitos. Portanto, jamais se deve imputar aos direitos fundamentais a culpa pela impunidade crônica que assola o país. A culpa não é dos direitos em si, mas das interpretações extremistas que são feitas, inclusive por alguns membros do Judiciário, que colocam as garantias processuais como valores intocáveis e inflexíveis, sem atentar para a idéia de proporcionalidade e para o dever de combater a criminalidade.

Ainda assim, para não passar uma idéia distorcida, é preciso lembrar qualquer restrição a direitos fundamentais deve ser vista com desconfiança, exigindo-se uma forte carga argumentativa para afastar a garantia constitucional. Para aplicar corretamente o princípio da proibição de abuso, deve-se exigir, antes de limitar o direito fundamental, a comprovação de um fundado receio, com base em elementos concretos, de que a norma constitucional está sendo utilizada para a prática de crimes. Não se pode simplesmente alegar vagamente a proibição de abuso para justificar toda e qualquer suspensão de garantias constitucionais, como se os fins justificassem os meios, à la Maquiavel. Afirmar que os direitos fundamentais podem ser limitados não significa dar uma carta em branco para que eles sejam suprimidos abusivamente - e talvez seja aqui a grande crítica que se pode fazer à técnica da ponderação e à teoria dos princípios, que cada vez mais ganha adeptos aqui no Brasil.

Na verdade, reconhecer que “não há direitos absolutos” e que “toda norma de direito fundamental é relativa, passível de limitação”, como se costuma bradar sem qualquer critério seguro, é extremamente perigoso, já que pode levar a uma idéia equivocada de que as proteções constitucionais são frágeis e que podem ceder sempre que assim ditar o “interesse público”, expressão vaga que, no final das contas, pode justificar quase tudo. É preciso lembrar que o Brasil passou por uma ditadura militar na qual era possível encontrar placas como a que se encontrava no saguão de elevadores da polícia de São Paulo, que dizia: “diante da pátria não há direitos”[12]. Logicamente, uma situação assim não é compatível com um Estado que se julgue democrático de direito.

Quando a Constituição determina que “a casa é asilo inviolável do indivíduo” ou então fala em “inviolabilidade das comunicações” ou ainda que “é inviolável a liberdade de locomoção” etc., pode-se dizer que, na grande maioria das vezes, a norma constitucional prevalecerá, ou seja, será inflexível. A regra é a observância dos direitos fundamentais e não sua restrição.

Apenas quando houver dados objetivos que indiquem que o titular do direito está utilizando a proteção constitucional para cometer crimes, violando, com isso, direitos fundamentais alheios, será justificada a restrição ao direito com base no princípio da proibição de abuso.

Dito isso, conclui-se: punir os ilícitos penais, ao contrário de representar uma violação a direitos fundamentais, significa, antes de tudo, uma forma de proteger esses direitos.

Notas


[1] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodrigues, sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 77, páginas 74-75.
[2] “Art. 5º - XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
[3] “Art. 5º - XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
[4] “Art. 5º - XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.
[5] “Art. 5º - XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”; “art. 17, §4º - É vedada a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar”.
[6] “Art. 243 - As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único - Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias”.
[7] “Art. 5º - LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.
[8] STF, MS 23.452-RJ, Rel. Min. Celso de Mello, j. 16/9/1999.
[9] STF, HC 7814-5/SP, rel. Min. Celso de Mello. Confira a ementa: “A administração penitenciária, com fundamento em razões de segurança pública, de disciplina prisional ou de preservação da ordem jurídica, pode, sempre excepcionalmente, e desde que respeitada a norma inscrita no art. 41, parágrafo único, da Lei n. 7.210/84, proceder à interceptação da correspondência remetida pelos sentenciados, eis que a cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas”
[10] TRF 4ª Região, MS 2001.04.01.070250-0/RS, j. 3/2/1001. O STF também tem entendimento no mesmo sentido: “Ninguém ignora que o Estatuto da Advocacia — considerada a essencialidade das cláusulas que protegem a liberdade de defesa e que resguardam o sigilo profissional — garante, ao advogado, ‘a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, de seus arquivos e dados, de sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas ou afins, salvo caso de busca ou apreensão determinada por magistrado…’ (Lei n. 8.906/94, art. 7º, II). É certo que essa garantia de inviolabilidade não se reveste de caráter absoluto, pois — consoante adverte Orlando de Assis Corrêa (Comentários ao Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, p. 48, item n. 37, 1995, AIDE) — …havendo mandado de busca e apreensão assinado por magistrado, o escritório e seus arquivos podem ser vasculhados’” (STF, MS 23.595, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 17-12-99, DJ de 1º-2-00). Vale ressaltar que, nesse caso, o STF entendeu que a garantia da inviolabilidade do escritório de advocacia somente poderia ser restringida por ordem do próprio Poder Judiciário. “Sendo assim, nem a Polícia Judiciária, nem o Ministério Público, nem a administração tributária e nem a Comissão Parlamentar de Inquérito ou seus representantes, agindo por autoridade própria, podem invadir domicílio alheio com o objetivo de apreender, durante o período diurno, e sem ordem judicial, quaisquer objetos que possam interessar ao Poder Público. (…) Conclui-se, desse modo, que, tratando-se de escritório de advocacia, impõe-se, para efeito de execução de medidas de busca e apreensão, que sejam estas previamente autorizadas por decisão judicial, em face do que dispõe a Lei n. 8.906/94 (art. 7º, II), c/c a Constituição da República (art. 5º, XI)”
[11] Voto vencedor do Min. Cezar Peluso no Inq-QO/DF, rel. Min. Cezar Peluso, j. 25/4/2007.
[12] GASPARI, Élio. As Ilusões Armadas: a ditadura escancarada São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 17.

Rui Barbosa - Mais atual do que nunca...


A falta de justiça, Srs. Senadores, é o grande mal da nossa terra, o mal dos males, a origem de todas as nossas infelicidades, a fonte de todo nosso descrédito, é a miséria suprema desta pobre nação. A sua grande vergonha diante do estrangeiro, é aquilo que nos afasta os homens, os auxílios, os capitais.

A injustiça, Senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas.

De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.

Essa foi a obra da República nos últimos anos. No outro regime (na Monarquia), o homem que tinha certa nódoa em sua vida era um homem perdido para todo o sempre, as carreiras políticas lhe estavam fechadas. Havia uma sentinela vigilante, de cuja severidade todos se temiam e que, acesa no alto (o Imperador, graças principalmente a deter o Poder Moderador), guardava a redondeza, como um farol que não se apaga, em proveito da honra, da justiça e da moralidade.

Rui Barbosa, escrito em 1914.

Crimes Sexuais


"O Novo Estatuto Legal dos Crimes Sexuais: do Estupro do Homem ao Fim das Virgens..."

Por Plínio Antônio Britto Gentil e Ana Paula Jorge

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Crime e Castigo


Tomo emprestado o título do romance do russo Dostoiévski, para comentar a multiplicação dos crimes nesta cultura torta, desde os pequenos "crimes" cotidianos – falta de respeito entre pais e filhos, maus-tratos a empregados, comportamento impensável de políticos e líderes, descuido com nossa saúde, segurança, educação – até os verdadeiros crimes: roubos, assaltos, assassinatos, tão incrivelmente banalizados nesta sociedade enferma. A crise de autoridade começa em casa, quando temos medo de dar ordens e limites ou mesmo castigos aos filhos, iludidos por uma série de psicologismos falsos que pululam como receitas de revista ou programa matinal de televisão e que também invadiram parte das escolas. Crianças e adolescentes saudáveis são tratados a mamadeira e cachorro-quente por pais desorientados e receosos de exercer qualquer comando. Jovens infratores são tratados como imbecis, embora espertos, e como inocentes, mesmo que perversos estupradores, frios assassinos, traficantes e ladrões comuns. São encaminhados para os chamados centros de ressocialização, onde nada aprendem de bom, mas muito de ruim, e logo voltam às ruas para continuar seus crimes.

Estamos levando na brincadeira a questão do erro e do castigo, ou do crime e da punição. A banalização da má-educação em casa e na escola, e do crime fora delas, é espantosa e tem consequências dramáticas que hoje não conseguimos mais avaliar. Sem limites em casa e sem punição de crimes fora dela, nada vai melhorar. Antes de mais nada, é dever mudar as leis – e não é possível que não se possa mudar uma lei, duas leis, muitas leis. Hoje, logo, agora! O ensino nas últimas décadas foi piorando, em parte pelo desinteresse dos governos e pelo péssimo incentivo aos professores, que ganham menos do que uma empregada doméstica, em parte como resultado de "diretrizes de ensino" que tornaram tudo confuso, experimental, com alunos servindo de cobaias, professores lotados de teorias (que também não funcionam). Além disso, aqui e ali grupos de ditos mestres passaram a se interessar mais por politicagem e ideologia do que pelo bem dos alunos e da própria classe. Não admira que em alguns lugares o respeito tenha sumido, os alunos considerem com desdém ou indignação a figura do antigo mestre e ainda por cima vivam, em muitas famílias, a dor da falta de pais: em lugar deles, como disse um jovem psicólogo, eles têm em casa um gatão e uma gatinha. Dispensam-se comentários.

Autoridade, onde existe, é considerada atrasada, antiquada e chata. Se nas famílias e escolas isso é um problema, na sociedade, com nossas leis falhas, sem rigor nem coerência, isso se torna uma tragédia. Não me falem em policiais corruptos, pois a maioria imensa deles é honrada, ganha vergonhosamente pouco, arrisca e perde a vida, e pouco ligamos para isso. Eu penso em leis ruins e em prisões lotadas de gente em condições animalescas. Nesta nossa cultura do absurdo, crimes pequenos levam seus autores a passar anos num desses lixões de gente chamados cadeias (muitas vezes sem sequer ter havido ainda julgamento e condenação), enquanto bandidos perigosos entram por uma porta de cadeia e saem pela outra, para voltar a cometer seus crimes, ou gozam na cadeia de um conforto que nem avaliamos.

Precisamos de punições justas, autoridade vigilante, uma reforma geral das leis para impedir perversidade ou leniência, jovens criminosos julgados como criminosos, não como crianças malcriadas. Ensino, educação e justiça tornaram-se tão ruins, tudo isso agravado pelo delírio das drogas fomentado por traficantes ou por irresponsáveis que as usam como diversão ou alívio momentâneo, que passamos a aceitar tudo como normal: "É assim mesmo". Muito crime, pouco castigo, castigo excessivo ou brando demais, leis antiquadas ou insuficientes, e chegamos aonde chegamos: os cidadãos reféns dentro de casa ou ratos assustados nas ruas, a bandidagem no controle; pais com medo dos filhos, professores insultados pela meninada sem educação. Seria de rir, se não fosse de chorar.

Por Lya Luft, escritora - Revista Veja, Edição n. 2123.

Eflúvios mortais

Entra em vigor na semana que vem a nova lei paulista que bane o fumo de todos os ambientes de uso coletivo total ou parcialmente fechados, aí incluídos lugares de trabalho, de estudo, de culto religioso, de lazer, de esporte ou entretenimento, áreas comuns de condomínios, casas de espetáculos, teatros, cinemas, bares, lanchonetes, boates, restaurantes, praças de alimentação, hotéis, pousadas, centros comerciais, bancos e similares, supermercados, açougues, padarias, farmácias e drogarias, repartições públicas, instituições de saúde, escolas, museus, bibliotecas, espaços de exposições, veículos públicos ou privados de transporte coletivo, viaturas oficiais de qualquer espécie e táxis. Em termos práticos, o sujeito só poderá dar suas tragadas em locais abertos ou entrincheirado em sua própria casa ou carro.

Exagero? Decerto, mas não como você, leitor, está pensando. Já estive entre aqueles que consideravam a grita contra o chamado fumo passivo um movimento histriônico. Ao longo dos últimos anos, entretanto, surgiram evidências empíricas de que o fumante envenena e mata não apenas a si próprio (um direito incontestável) como também "inocentes", isto é, pessoas que não escolheram dedicar-se aos prazeres da nicotina. Não chego a utilizar as definições do saudoso George W. Bush para qualificar fumantes de terroristas, mas acho legítimo que limitem suas libações fumígenas a ambientes onde não provoquem mal a terceiros.

Não há dúvida de que o fumo é um grande problema de saúde pública. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o tabaco é o maior assassino global do planeta, matando anualmente 5,4 milhões de pessoas, o que representa 10% de todos os óbitos de adultos. Um número igualmente astronômico vive com as sequelas do hábito, que incluem doenças respiratórias e cardíacas, AVCs (derrames) e vários tipos de câncer. Os prejuízos econômicos, contabilizados em despesas hospitalares, dias de trabalho perdidos etc., chegam facilmente às centenas de bilhões de dólares.

E a cifra da OMS pode estar subestimada. Nas contas da organização, dos 5,4 milhões de óbitos, apenas 200 mil (3,7%) são debitados ao fumo passivo. Só que novas pesquisas sugerem que essa proporção pode ser maior.

Até algumas décadas atrás, associava-se o tabagismo quase que exclusivamente ao câncer de pulmão. Hoje, o cigarro continua provocando câncer, mas constatou-se que ele têm efeitos igualmente nocivos sobre o sistema cardiovascular --e com maior impacto epidemiológico.

Em 2006, o "European Heart Journal" trouxe um artigo da equipe liderada pelo médico Francesco Barone-Adesi, da Universidade de Turim, mostrando que houve uma redução de 11% nas internações e mortes por ataques cardíacos na região do Piemonte depois que entrou em vigor na Itália uma lei semelhante à paulista. Compararam-se os cinco meses posteriores à adoção da nova regra com igual período do ano anterior. As admissões hospitalares e óbitos baixaram de 922 para 832. Foram considerados apenas pacientes com menos de 60 anos. Não se pode considerar a diminuição como parte de uma tendência preexistente, porque o número de internações para a patologia vinha crescendo no Piemonte ao longo dos últimos anos.

Resultados ainda mais significativos (queda de 17%) foram observados na Escócia, como mostra artigo de Jill Pell "et alii" publicado no "New England Journal of Medicine" em 2008, que ainda atribuiu 67% dessa redução a pacientes não fumantes.

Quem frequentou as aulas de lógica vai se lembrar de que correlação não é causa. É perfeitamente possível que essas diminuições se devam a outros fatores que não o banimento do tabaco ou que sejam fruto de variações puramente aleatórias. Ocorre que a sucessão de trabalhos apontando para a mesma direção, ao lado do surgimento de explicações fisiológicas verossímeis para os efeitos do tabaco sobre o sistema cardiovascular, indicam que devemos pelo menos testar controles fortes como o proposto pela lei paulistana. Se a hipótese estiver correta, vidas de "inocentes" terão sido salvas; se não, fumantes terão apenas perdido o direito a algumas baforadas em lugares públicos.

Sou um ferrenho defensor das liberdades individuais e considero que até drogas como cocaína e heroína deveriam ter venda livre para maiores de idade. O que cada um faz consigo mesmo sem ameaçar terceiros é assunto particular fora da alçada do Estado. Creio, entretanto, que as evidências apresentadas até aqui devem bastar para convencer mesmo o mais empedernido dos fumantes (eu já fui um) de que ele não tem o direito de aspergir seu veneno sobre os concidadãos.

A essa altura, o leitor deve estar se perguntando por que diabos eu achei a norma patrocinada pelo governador José Serra exagerada. Bem, creio que o objetivo da lei é acertadíssimo assim como a terapêutica proposta, que é o virtual banimento da fumaça. O que não gosto no novo diploma, à parte detalhes realmente menores, como não permitir que atores fumem em palco --que poderiam ser resolvidos com bom senso e negociação_ são os mecanismos de fiscalização em que ela se apoia.

Refiro-me especificamente ao artigo 3º da lei estadual nº 13.541/09, que reza: "O responsável pelos recintos de que trata esta lei deverá advertir os eventuais infratores sobre a proibição nela contida, bem como sobre a obrigatoriedade, caso persista na conduta coibida, de imediata retirada do local, se necessário mediante o auxílio de força policial". No mesmo espírito caminham outros dispositivos da norma, que convidam as pessoas a denunciar infrações. Ao que parece, a deduragem poderá até ser feita de forma anônima pela internet.

Em primeiro lugar, não aprecio a ideia de uma lei que obrigue as pessoas a serem autoritárias. Não sei até que ponto uma norma que força um dono de bar ou restaurante a chamar a polícia para expulsar seu cliente tem amparo na razoabilidade, que é requisito básico de qualquer mecanismo legal. Num caso análogo, que é o do cinto de segurança, eu não me sinto obrigado a expulsar de meu carro o carona que não queira afivelar-se. Ora, o pressuposto é o de que ambos somos cidadãos competentes e conhecedores da lei. Punir a mim e não a ele pela infração fere o princípio constitucional de individualização da pena (CF, art. 5º, inciso XLVI).

De resto, é duvidoso o que a polícia possa fazer quando chamada, uma vez que a lei não estabelece nenhuma punição para o fumante recalcitrante, mas apenas para o dono do estabelecimento.

Minha sensação é a de que Serra e os deputados estaduais caíram na velha armadilha do populismo. Quiseram ficar bem com os 80% de não fumantes, mas sem bater de frente com os 20% que dão suas tragadas. O resultado é essa esquisitice jurídica, pela qual a conduta que se quer proibir não é punível, mas deixar de reprimi-la é.

Coisas da política. Seja como for, não vejo maiores problemas, porque não creio que os fumantes se obstinarão. O mais provável é que aceitem os olhares recriminadores dos não fumantes e guardem suas baforadas para o ar livre. Todos estaremos melhor.

Por Hélio Schwartsman, colunista da Folha de S. Paulo e Bacharel em filosofia.

Problema de homens


Vejo nas sondagens que a violência contra as mulheres é o assunto número catorze nas preocupações dos espanhóis, apesar de que todos os meses se contem pelos dedos, e desgraçadamente faltam dedos, as mulheres assassinadas por aqueles que crêem ser seus donos. Vejo também que a sociedade, na publicidade institucional e em distintas iniciativas cívicas, assume, é certo que só pouco a pouco, que esta violência é um problema dos homens e que os homens têm de resolver. De Sevilha e da Estremadura espanhola chegaram-nos, há tempos, notícias de um bom exemplo: manifestações de homens contra a violência. Até agora eram somente as mulheres quem saía à praça pública a protestar contra os contínuos maus tratos sofridos às mãos dos maridos e companheiros (companheiros, triste ironia esta), e que, a par de em muitíssimos casos tomarem aspectos de fria e deliberada tortura, não recuam perante o assassínio, o estrangulamento, a punhalada, a degolação, o ácido, o fogo. A violência desde sempre exercida sobre a mulher encontrou no cárcere em que se transformou o lugar de coabitação (neguemo-nos a chamar-lhe lar) o espaço por excelência para a humilhação diária, para o espancamento habitual, para a crueldade psicológica como instrumento de domínio. É o problema das mulheres, diz-se, e isso não é verdade. O problema é dos homens, do egoísmo dos homens, do doentio sentimento possessivo dos homens, da poltronaria dos homens, essa miserável cobardia que os autoriza a usar a força contra um ser fisicamente mais débil e a quem foi reduzida sistematicamente a capacidade de resistência psíquica. Há poucos dias, em Huelva, cumprindo as regras habituais dos mais velhos, vários adolescentes de treze e catorze anos violaram uma rapariga da mesma idade e com uma deficiência psíquica, talvez por pensarem que tinham direito ao crime e à violência. Direito a usar o que consideravam seu. Este novo acto de violência de género, mais os que se produziram neste fim-de-semana, em Madrid uma menina assassinada, em Toledo uma mulher de 33 anos morta diante da sua filha de seis, deveriam ter feito sair os homens à rua. Talvez 100 mil homens, só homens, nada mais que homens, manifestando-se nas ruas, enquanto as mulheres, nos passeios, lhes lançariam flores, este poderia ser o sinal de que a sociedade necessita para combater, desde o seu próprio interior e sem demora, esta vergonha insuportável. E para que a violência de género, com resultado de morte ou não, passe a ser uma das primeiras dores e preocupações dos cidadãos. É um sonho, é um dever. Pode não ser uma utopia.

Por José Saramago, nobel de literatura.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

ADVOGADO - DOUTOR POR DIREITO E TRADIÇÃO

ADVOGADO - DOUTOR POR DIREITO E TRADIÇÃO
Por: DR. JÚLIO CARDELLA
(Tribuna do Advogado de Outubro de 1986, pág. 5)

Por insistência de colegas, publicamos nesta Tribuna do Advogado, um despretensioso artigo, elaborado há 12 anos, e que foi publicado pela imprensa e algumas revistas, causando certa polêmica entre outros profissionais liberais, principalmente entre médicos, que sistematicamente se intitulam "doutores", quando na verdade o uso da honraria pertence por direito e também por tradição, aos Advogados, salvo raras exceções.

Comecemos pela tradição, que é também fonte de Direito, para demonstrar que a verdade está a nosso lado sem querer ferir suscetibilidadesdos outros colegas liberais, mas com o intuito de reivindicar aquilo que nos pertence e que nos vem sendo usurpado por "usucapião, através de posse violenta", no dizer de um saudoso companheiro.

Embora fôssemos encontrar o registro da palavra DOUTOR em um cânon do ano 390 citado por MARCEL ANCYRAN, editado no Concílio de Sarragosse, pelo qual se proibia declinar essa qualidade sem permissão (Code de L'Humanité, ed, 1778 - Verdon - Biblioteca OAB-Campinas), o certo é que somente se outorgou pela primeira vez esse título aos filósofos - DOCTORES SAPIENTIAE - e aqueles que promoviam conferências públicas sobre temas filosóficos, assim também eram chamados DOUTORES, os advogados e juristas aos quais se atribuía o JUS RESPONDENDI.

Já no século XII, se tem a notícia do uso da honraria, atribuído a grandes filósofos como Santo Tomás de Aquino, Duns Scott, Rogério Bacon e São Boaventura, cognominado de Angélico, Sutil, Maravilhoso e Seráfico respectivamente.

Pelas Universidades o título só foi outorgado pela primeira vez, a um ADVOGADO, que passou a ostentar o título de DOCTOR LEGUM em Bolonha, ao lado dos DOCTORES ES LOIX, somente dado àqueles versados na ciência do Direito.

Tempos depois a Universidade de Paris passou a conceder a honraria somente aos diplomados em Direito, chamando-os de DOCTORES CANONUM ET DECRETALIUM. Eram estudiosos do Direito, e quando ocorreu a fusão deste com o Direito Canônico, passaram a chamar os diplomados de DOCTORES UTRUISQUE JURIS.

Percebe-se daí, que, pelas suas origens, o título de Doutor é honraria legítima e originária dos Advogados ou Juristas, e não de qualquer outra profissão. Os próprios Juízes, uns duzentos anos mais tarde, protestaram (eles também recebiam o título de Doutor tanto das Faculdades Jurídicas como das de Teologia) contra os médicos que na época se apoderavam do título, reservado aos homens que reservam as ciências do espírito, à frente das quais cintila a do Direito! Não é sem razão que a Bíblia - livro de Sabedoria - se refere aos DOUTORES DA LEI, referindo-se aos jurisconsultos que interpretavam a Lei de Moisés, e PHISICUM aos curandeiros e médicos da época, antes de usucapido o nosso título!

Houve portanto, como afirmamos, um caso de "usucapião por posse violenta" por parte dos médicos que passaram aostentar a honraria, que no Brasil, é uma espécie de "collier a toutes les bêtes", pois qualquer um que se vê possuidor de um diploma universitário, se auto-doutora...

Sendo essa honraria autêntica por tradição dos Advogados e Juristas, entendemos que a mesma só poderia ser estendida aos diplomados por Escola Superior, após a defesa da tese doutoral.

Agora, o bacharel em Direito, que efetivamente milita e exerce a profissão de Advogado, por direito lhe é atribuída a qualidade de Doutor.

Se não vejamos: O Dicionário de Tecnologia Jurídica de Pedro Nune, coloca muito bem a matéria.
Eis o verbete: BACHAREL EM DIREITO - Primeito grau acadêmico, conferido aquém se forma numa Faculdade de Direito. O portador deste título, que exerce o ofício de Advogado, goza do privilégio de DOUTOR . (aos que gostam de pesquisar citamos as fontes dessa definição: Ord. L. 1° Tit. 66§42; Pereira e Souza, Crim. 75. e not. 188; Trindade, pág. 157, nota 143 in fine, e pág. 529 § 2°; Aux. Jur., pág. 355 Ass93)

O decano dos advogados de Campinas - Dr. João Ribeiro Nogueira - estimado amigo, pesquisador incansável, lembra muito bem em artigo publicado no "Correio Popular" de 3 de agosto de 1971, um alvará régio editado por D. Maria I, a Pia, de Portugal, pelo qual os bacharéis em Direito, passaram a ter o direito ao tratamento de DOUTORES ! Ora, todos sabem que uma lei só perde sua vigência quando revogada por outra lei.

Assim, está plenamente em vigor no Brasil esse alvará que outorgou o título de DOUTOR aos advogados!

Não consta nesse alvará legal, que tenha sido estendido a nenhuma outra profissão ! E tanto isto é verdade, que à época, um rábula, de notável saber jurídico e grande honrabilidade, obteve também a honraria, por exercer a profissão, mas foi necessário um alvará régio especial, sendo doutorado por decreto legislativo, pois não era advogado diplomado em Faculdade de Direito. Foi o caso do rábula Antonio Pereira Rebouças...

A lei está em vigor, assim como tantas outras da época do Império, que não foram revogadas, como o nosso Código Comercial de 1850.

Por tradição e por direito, somos Doutores . E não poderia também ser de outra forma, uma vez que, exercendo a profissão de Advogado, o bacharel em Direito, está constantemente defendendo teses perante Juízos e Tribunais, que, julgando procedentes suas razões, estarão de um modo ou outro, aprovando suas teses, sobre os mais variados ramos do Direito. E o que se dizer do Advogado perante o Tribunal de Júri, Tribunais Superiores, Auditorias? Não sustenta diária e publicamente suas teses?

O Prof. Flamínio Fávero, por sua vez, eminente médico, que ostentava mais de 50 títulos, manifestando-se certa vez sobre o assunto, repudiou o uso indiscriminado do título doutoral, por qualquer profissional, dizendo que a "lei não permite isso, nem a ética" referindo-se especialmente aos esculápios que pretendem até "monopolizar o título dos causídicos".

É tal a inversão e investida dos médicos sobre o nosso título , que nos Estados Unidos chega-se a dizer com freqüência: "I am a doctor not a lawyer", quando em verdade, este último é o doutor... A enciclopédia Americana, também registra o fato de terem sido os advogados os primeiros doutores  mas em pequenos dicionários vamos encontrar a definição de "doctor" como sendo "médico" para a língua portuguesa.

Muitos colegas não têm o hábito de antepor ao próprio nome, em seus cartões e impressos, o título de DOUTOR, quando em verdade, devem faze-lo, porque a História nos ensina que somos os donos de tal título, por DIREITO E TRADIÇÃO, e está chegada a hora de reivindicarmos o que é nosso; este título constitui adorno por excelência da classe advocatícia.


Identificação: DIM /1825 (DECRETO DO IMPERIO) 1/8/1825 23:00:00

Situação: IMPERIAL

Chefe de Governo: DOM PEDRO PRIMEIRO

Fonte: COLECÃO DAS LEIS DO IMPERIO DO BRASIL P. 4

Ementa: CRIA PROVISORIAMENTE UM CURSO JURIDICO NESTA CORTE.

Referenda: SECRETARIA DOS NEGOCIOS

Alteração: LEI DO IMPERIO DE 11/08/1827: CRIA DOIS CURSOS DE CIENCIAS JURIDICAS E SOCIAIS; INTRODUZ REGULAMENTO, ESTATUTO PARA O CURSO JURIDICO, DISPOE SOBRE O TITULO (GRAU) DE DOUTOR PARA O ADVOGADO. - DEC. 17874A - 09/08/1927: DECLARA FERIADO O DIA 11/08/1827 - DATA EM QUE SE COMEMORA O CENTENARIO DA CRIACAO DOS CURSOS JURIDICOS NO BRASIL.

Resumo: CRIACAO DO CURSO DE DIREITO. ADVOGADO.

Assunto: CURSOS JURIDICOS



LEI Nº 1.827, DE 11 DE AGOSTO DE 1827.

Vide Decreto nº 1.036A, de 1890 Crêa dous Cursos de sciencias Juridicas e Sociaes, um na cidade de S. Paulo e outro na de Olinda.


Dom Pedro Primeiro, por Graça de Deus e unanime acclamação dos povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os nossos subditos que a Assembléia Geral decretou, e nós queremos a Lei seguinte:

Art. 1.º - Crear-se-ão dous Cursos de sciencias jurídicas e sociais, um na cidade de S. Paulo, e outro na de Olinda, e nelles no espaço de cinco annos, e em nove cadeiras, se ensinarão as matérias seguintes:

1.º ANNO

1ª Cadeira. Direito natural, publico, Analyse de Constituição do Império, Direito das gentes, e diplomacia.

2.º ANNO

1ª Cadeira. Continuação das materias do anno antecedente.

2ª Cadeira. Direito publico ecclesiastico.

3.º ANNO

1ª Cadeira. Direito patrio civil.

2ª Cadeira. Direito patrio criminal com a theoria do processo criminal.

4.º ANNO

1ª Cadeira. Continuação do direito patrio civil.

2ª Cadeira. Direito mercantil e marítimo.

5.º ANNO

1ª Cadeira. Economia politica.

2ª Cadeira. Theoria e pratica do processo adoptado pelas leis do Imperio.

Art. 2.º - Para a regencia destas cadeiras o Governo nomeará nove Lentes proprietarios, e cinco substitutos.

Art. 3.º - Os Lentes proprietarios vencerão o ordenado que tiverem os Desembargadores das Relações, e gozarão das mesmas honras. Poderão jubilar-se com o ordenado por inteiro, findos vinte annos de serviço.

Art. 4.º - Cada um dos Lentes substitutos vencerá o ordenado annual de 800$000.

Art. 5.º - Haverá um Secretario, cujo offício será encarregado a um dos Lentes substitutos com a gratificação mensal de 20$000.

Art. 6.º - Haverá um Porteiro com o ordenado de 400$000 annuais, e para o serviço haverão os mais empregados que se julgarem necessarios.

Art. 7.º - Os Lentes farão a escolha dos compendios da sua profissão, ou os arranjarão, não existindo já feitos, com tanto que as doutrinas estejam de accôrdo com o systema jurado pela nação. Estes compendios, depois de approvados pela Congregação, servirão interinamente; submettendo-se porém á approvação da Assembléa Geral, e o Governo os fará imprimir e fornecer ás escolas, competindo aos seus autores o privilegio exclusivo da obra, por dez annos.

Art. 8.º - Os estudantes, que se quiserem matricular nos Cursos Juridicos, devem apresentar as certidões de idade, porque mostrem ter a de quinze annos completos, e de approvação da Lingua Franceza, Grammatica Latina, Rhetorica, Philosophia Racional e Moral, e Geometria.

Art. 9.º - Os que freqüentarem os cinco annos de qualquer dos Cursos, com approvação, conseguirão o gráo de Bachareis formados. Haverá tambem o grào de Doutor, que será conferido áquelles que se habilitarem som os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e sò os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes.

Art. 10.º - Os Estatutos do VISCONDE DA CACHOEIRA ficarão regulando por ora naquillo em que forem applicaveis; e se não oppuzerem á presente Lei. A Congregação dos Lentes formará quanto antes uns estatutos completos, que serão submettidos á deliberação da Assembléa Geral.

Art. 11.º - O Governo crearà nas Cidades de S. Paulo, e Olinda, as cadeiras necessarias para os estudos preparatorios declarados no art. 8.º.

Mandamos portanto a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente, como nella se contém. O Secretario de Estado dos Negocios do Imperio a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palacio do Rio de Janeiro aos 11 dias do mez de agosto de 1827, 6.º da Independencia e do Imperio.

IMPERADOR com rubrica e guarda.

(L.S.)

Visconde de S. Leopoldo.

Carta de Lei pela qual Vossa Majestade Imperial manda executar o Decreto da Assemblèa Geral Legislativa que houve por bem sanccionar, sobre a criação de dous cursos juridicos, um na Cidade de S. Paulo, e outro na de Olinda, como acima se declara.

Para Vossa Majestade Imperial ver.

Albino dos Santos Pereira a fez.

Registrada a fl. 175 do livro 4.º do Registro de Cartas, Leis e Alvarás. - Secretaria de Estado dos Negocios do Imperio em 17 de agosto de 1827. – Epifanio José Pedrozo.

Pedro Machado de Miranda Malheiro.

Foi publicada esta Carta de Lei nesta Chancellaria-mór do Imperio do Brazil. – Rio de Janeiro, 21 de agosto de 1827. – Francisco Xavier Raposo de Albuquerque.

Registrada na Chancellaria-mór do Imperio do Brazil a fl. 83 do livro 1.º de Cartas, Leis, e Alvarás. – Rio de Janeiro, 21 de agosto de 1827. – Demetrio José da Cruz.

Este texto não substitui o publicado na CLIB de 1827, 1 , pag 5-7